quarta-feira, junho 28, 2017

os corredores habitados


Canto a escuridão que me envolve, a nuvem branca duma noite tranquila; o lar, canto da voz soterrada e iridescente, áleas do corpo amortecido, sopro embalado na quietude do gesto: plena sombra de mim; - ando no caminho de subtil aura, no bronze da penumbra, descuidado e alegre como tília ao vento do abandono ou centro de uma rosa de chuva; é noite e durmo na inviolável densidade do olhar, a mão prostrada sobre a floresta da secura, preso a mim em lençol de água ao abrigo do voo e das penas; trémula noite de pedras e rochedos, cintilações de mármores pelos desvãos dos músculos adormecidos; - elevo-me pelo canto escurecido do silêncio, dou passos de ave sobre o luar da ternura; no lugar das árvores encontra-se um passado de vidro, sobre o chão de pedra a coalhada noite vegetal, pelo aberto laço do branco tempo despede-se aquele som de água no regato correndo para a foz da noite, densa maré de bruma; trago das olarias o bojo dos odores do barro e das sementes, a névoa de uma tranquilidade de sonho e plácido alvor; os segredos da morte vestem-se de pétalas sonâmbulas, terra vã de estátuas; - vivo adormecido no folgar nocturno e na densa malva de penumbra; olho-as…, sou eu no meu espectro de lava; vejo-os soltos na verve dos risos, saltos e pulos, precipitados a palpitar danças de luz ao relento sobre a quimera dos risos na noite deslumbrada…, sou eu preso à gávea alteada em abandono sonâmbulo, trança de sonho sobre o linho do lençol; - sedosas lâminas do entendimento crescendo no chumbo do asfalto - a casa de um grito de asas volvida da louca mansidão; - acordo sob o precipício da minha voz nocturna, balanço entre a queda do ente que deixei de ser, os outros que brincavam na nave do sonho que fui e o sussurro longínquo do passado que de lá bradei 

sábado, junho 10, 2017

QUOTIDIANOS POÉTICOS UM DIA NA VIDA DE …..

Entrevista de Pedro Jubilot



Como é o quotidiano do teu poeta/ eu poético / tu com a poesia da tua vida ? Da tua poesia? (isto é um pouco confuso, abstracto…mas… 

Se entendi a pergunta, reformulando-a: como convivo com a minha poesia no meu quotidiano? Também poderá querer dizer: no meu viver quotidiano, onde está o meu eu poético? Em qualquer dos casos, na intenção subjacente à pergunta, julgo coexistirem três situações, a saber: 1 – o ideário que subjaz nos afazeres rotineiros; 2 - o poeta ou “eu poético” que como “um outro” acompanha o anterior; 3 – como surge o sentimento poético dessa convivialidade.


O viver quotidiano exige, sobre a rotina acinzentada dos afazeres, alguns momentos, ainda que diminutos, da libertação dos sentidos para fora ou para dentro, expandindo-nos emocionalmente. Eu diria que, quando isso acontece, estamos a viver momentos de poesia. Contudo, ser poeta no sentido de produzir algo ‒ a palavra poesia inicialmente significa produzir ‒ exige uma outra dimensão mais: transmutar esses momentos em linguagem e escrevê-la. Sendo isto óbvio, não deixa de ser pertinente; o fenómeno, está no segredo da linguagem. Quanto a mim, esta exerce um poder activo sobre o humano: não é indiferente dizer «sai daqui!...» ou «fica aqui…», mesmo para quem o diz. Visto assim, deste ângulo, a poesia parece inscrever-se no sentido da libertação do sujeito, de resistência ao sufoco. Todavia, se esta ideia nos leva ao pronunciamento da catarse como fim, penso que a arte, a poesia, é mais do que isso.   
 

Diz acerca de coisas dos teus dias em que acontece poesia ou que a faças acontecer? O que há de/consideras poético em certas horas dos teus dias

Atrás, falo da “libertação emocional” como momento poético, quero dizer: limpar/distrair a mente dos fluxos de preocupações que obstam a que fiquemos disponíveis mentalmente para pensar e sentir. A poesia exige disponibilidade, embora estados de tensão não esquecer também levem à produção. Mas liberdade e tensão emocional não são contraditórios, digamos mesmo que, juntas, formam um quadro propício à produção. Costumamos designar esses momentos por inspiração. No meu caso, a tensão é um dado resultante do pensamento, pensar o concreto, os problemas que o ser enfrenta, sejam eles sociais, filosóficos ou procura do sentido, indagação subjectiva, a nossa relação com ou a presença da Natureza e do outro em nós. Não me vejo à margem do homem político e por isso da política; não sou “ higienista espiritual”, sempre assumi o meu lado partidário e tento não tratar o outro como imbecil, canalha ou irrisório. Não procuro o belo pelo belo, seja na natureza, nos sentimentos piedosos ou amorosos. É a procura de desvelar alguma realidade que me emociona, não é viver o mundo pelo lado do esteticismo. Este é o panorama de fundo onde a poesia me acontece e está presente desde que acordo até ao deitar. Tudo o que existe, e o que existe é tudo, é passível de meditação, de sentimento, e essa é a grande mensagem.
 O meu primeiro livro, Página Móvel com Texto Fixo, foi produzido, em grande parte, durante a noite, já deitado; sobre a mesa-de-cabeceira estava sempre o caderno, e aí ia escrevendo os textos que me iam surgindo. O segundo, Ouro e Vinho, escrevi-o à mesa, enquanto comia, e o terceiro, Mostruário de Títulos para Poemas, cresceu frente ao computador. As mesas dos cafés também dão azo a momentos de produção, quando debruçado sobre a leitura. Houve, até, um poema que fiz quando estava a cozinhar e outro quando passava a roupa a ferro; as situações divergem, mas o que é comum nelas é o pensar sobre… observar a realidade ou o que julgamos que seja, e confrontá-lo com os nossos pressentimentos. O que digo atrás, contudo, é mais sobre uma parte do processo, as circunstâncias do momento, do que sobre o poema ou o acto, acção poética; para isso temos que entrar na obscura claridade da linguagem. Para mim, as palavras são uma espécie de cascabulho que a imagética tem que trabalhar em contexto emocional, criando entidades semânticas renovadas; isto é o acto poético, cuja materialidade imaterial fornece prazer, enquanto, culturalmente, produz sentido ao ser humano. A poesia pode ser material, como a fome, por isso se diz que nem só de pão vive o homem!

Já ninguém usa caneta e papel, quanto mais máquina de escrever, que material usas para escrever, como é o processo material da tua escrita?
( é isto importante)
E o imaterial ?
Sou alguém que cresceu mais ligado às artes plásticas do que à escrita. Talvez por essa ligação, sempre gostei de usar canetas. Sou do tempo do aparo, da caneta de tinta permanente, gosto de riscar, dou por mim, distraído, a desocultar o papel branco com traços informais; reflexos inorgânicos, ou orgânicos, duma energia desregulada e por isso formalmente abstracta. Espelho da nossa existência? Muitas vezes, acontece começar com uma forma de letra e acabar noutra; outras vezes, misturo inadvertidamente vários tipos de letra na mesma palavra. É uma confusão que me chega a irritar; dificilmente mantenho o mesmo tipo de letra no percurso da escrita, mas às vezes acontece, raramente. Sofro duma certa disgrafia e não só, troco a posição de algumas letras na palavra. Também tem a ver com a dicção; nasci e vivi no campo, onde as corruptelas da dicção são frequentes. Quando apareceu o computador, tive que me adaptar. A princípio, estranhei, mas rapidamente detectei certas vantagens, por exemplo, alterações e fixação do texto, releitura facilitada, pois a escrita, à mão, acaba por ser quase estenográfica. Actualmente escrevo com os objectos que tenho ao meu dispor no momento: esferográfica, teclado, grafite, caneta de tinta, aparo, se for caso disso; tenho uma colecção de aparos de escrita comercial que se utilizava nos livros do Deve-e-Haver. Se isto é importante? – não é e é; não é, porque a linguagem pouco ou nada tem a ver com este processo, e é, porque o prazer de escrever passa também pelo aspecto formal com que se age, neste caso, se escreve. Escrever no teclado do computador é como escrever sobre o algodão; escrever sobre o papel é como riscar na nossa pele é, mais ou menos, isto. Estes aspectos matéricos da escrita são interessantes de algum modo, mas os ditos imateriais são de outra ordem. Aqui levantam-se questões – quase esotéricas, diria eu com alguma ironia. Já a palavra, imaterial, contém um poço de sugestões e suspeições! Quando penso ou sinto, não há materialidade nenhuma nessa actividade mental e, acrescento, corporal? Sabe-se hoje que certas áreas do cérebro são activadas, conforme se reage aos estímulos externos ou internos, e que isso passa pelo percurso de substâncias químicas e energéticas através dos neurónios; criam mapas, segundo nos elucida o António Damásio, mapas que se repercutem pelo corpo todo, só assim se explica que o amor resida no coração! Para mim, a linguagem é um sexto sentido que a natureza ou a acção do ser humano foi capaz de desenvolver ao longo de milénios, senão ao longo de milhões de anos. O tão falado sexto sentido, que algumas vezes alguns referem a mulher possuir, não passa da linguagem, mas isso também acontece ao homem, só que o homem anda mais distraído com outros afazeres, anda duma maneira geral mais voltado para a acção exterior; quando se está voltado para a acção interior onde a linguagem se exerce, actua, passa a dizer-se que é um poeta, um artista! Neste sentido, a mulher será, por hipótese, sempre poeta, e o homem é-o às vezes! Assim como o ver se exerce através da luz, o tacto pelo apalpar, o cheiro pela activação do sistema olfactivo, a linguagem é activada pela sonoridade das palavras ou pelas imagens, elementos que constituem o significante da fala interior. Uma vez memorizadas as palavras e as imagens, estes entes podem ser activados pelas emoções, esta articulação cria o pano de fundo da linguagem que, procurando dar sentido às emoções, no caso da poesia, produzem por isso um outro tecido, dito imaterial. Sempre tive a ideia de que a linguagem é, do ponto de vista da sua percepção, digamos “imaterial”, mas acresce à natureza humana substrato material; a pouco e pouco, ela vai criando em nós uma segunda natureza, ou ampliando a natureza inicial. A poesia, a arte em geral, mais do que qualquer outra actividade humana, nesta hipótese, será um trajecto criador de sentido e, por isso, do humano. 

Quando ( dia, hora, estação do ano) escreves ?
Vícios, manias e segredos contáveis relacionados com a tua escrita …
 Não vejo um artista a produzir como se fosse um empregado de escritório, com horas ou outra marca temporal a regular o seu trabalho, mas tem que haver uma certa disciplina e continuidade; assim sendo, procuro todos os dias produzir alguma coisa, o que pode acontecer enquanto leio, pequenos apontamentos que surgem, ou à noite, depois do dia arrumado. A “mania” que sempre tive e tenho é a de ir ler para o café, no meio de um certo burburinho de fundo e que não seja estridente aos ouvidos. Na minha biografia, há a história dos cafés: Astória, Sul América, Atlântico, Calcinha, Carripana, e tantos outros mais dos quais não sei o nome.     
 


Consegues escolher o livro (e poema?) de tua autoria preferido/s ? Os mais relevantes?
Livro relevante da minha autoria destacava o Mostruário de Títulos para Poemas. Já em relação aos poemas, tenho muita dificuldade em salientar um; certamente há os que me parecem mais conseguidos, mas teria que reler tudo novamente. Essa apreciação depende também muito da perspectiva em que nos colocamos.  


Autores que gostas ou que possas dizer te inspiram a escrever?
Desde que fui para Lisboa aos doze anos que leio os consagrados da literatura, portugueses e estrangeiros, desde Zola a Steinbeck, Ferreira de Castro a Júlio Dinis passando pelo Aquilino Ribeiro… A poesia foi um pouco mais tarde, com Cesário Verde, Fernando Pessoa, etc. Todos esses escritores me influenciaram de alguma maneira, uns por um motivo, outros por outro; lembro-me do Germinal do Zola, Anna Karenina do Tolstói, assim como d’O Bairro da Lata ou A um Deus Desconhecido, do Steinbeck, ou ainda do Elogio da Loucura, do Erasmo. Das leituras mais recentes, há dois livros que me disseram muito: Em Busca do Tempo Perdido, do Proust, e o Ulisses do Joyce; há nestes livros muito de inovação na linguagem escrita, já não digo tanto do Kafka ou do Musil, o que não quer dizer que não sejam de igual modo grandes escritores. Percebo hoje que os aspectos da expressão formal da escrita sempre me prenderam; lembro-me de ter ficado entusiasmado com uma publicação pela embaixada brasileira, nos anos sessenta, do caderno Poesia Concreta, que ainda guardo. 

Que livro de poesia estás a ler, leste recentemente?
Há três áreas de escrita que estou sempre a ler: poesia, ensaio e narrativa, umas vezes mais concentrado numa área, outras noutra; só leio em português, não domino mais língua nenhuma, e mesmo o português penso que teria muito a aprender; nunca fui capaz de dominar a gramática nos seus aspectos técnicos; a lisura que eventualmente possa ter na minha escrita é mais resultado da leitura do que do saber. Estou a ler um livro de crítica literária do David Mourão-Ferreira, Vinte Poetas Portugueses, de 1980, O livro da Consciência, do António Damásio, e estou a acabar de ler O Livro do Desassossego, compilação da Teresa Rita Lopes. Já tinha lido o Bernardo Soares, mas estou a relê-lo, mais os outros dois semi-heterónimos, como o FP dizia.



Como encaras mais um livro de poesia, e este em relação aos anteriores?
Este meu último livro, Púrpura Voz, foi um pouco surpresa, porque não o tinha em mente publicar, sobretudo depois do Mostruário. Formalmente, está na sequência do Ouro e Vinho, quase nada tem a ver com os outros dois, mas é mais depurado do que aquele. Ao rever os poemas, eliminei tudo o que me pareceu estar a mais, ao ponto de alguém me dizer: «são tão pequenos os poemas…, mas já não há palavras?» O Púrpura Voz está arrumado em quatro contextos temáticos e abarca um tempo de produção à volta de vinte anos, entre o mais antigo e o mais recente dos poemas. Claro que, quando escrevi o poema de há vinte anos, foi como um complemento a um trabalho de artes plásticas e não era um texto autónomo, como aparece no livro. Os últimos, que também são os que estão no fim do livro, constituem uma experiência: há um verso e a seguir, em itálico, uma espécie de eco, como se fosse o coro das tragédias clássicas do teatro grego. 


Completa as frases:
Os artistas continuam a morrer…. se forem felizes.
O Algarve é um  bom lugar para…. despir a pele, deixar queimar o coração
O projecto Gorjões Arte é …. total arte.
A António Arroio para mim foi….uma nuvem de desassossego.
A galeria Margem era …..um barco na maré baixa
Ainda há uma esperança para o mundo enquanto…se disser que há.