terça-feira, dezembro 26, 2023

modelações XXII

 

 

O Valado
 Desenho a grafite sobre papel manteiga 20.5x14 cm 2023
 

Sou a voz duma caminhada pelo ligeiro vento; o dia está claro a perder-se nas secas ervas, ou ainda, nos muros das pedras antigas e cinzentas; estar aqui é o troar sussurrante de um tempo antigo, de pastos maduros ao sol, de constelações de dias leves como penas, de longos desafios de nada; a correia do tempo percorrendo as veias silenciosas dos mares sem ociosas navegações, sem caprichos de ondas rolantes onde a tristeza breve esmorece ao contacto com os olhos; olhos abertos sem intrigas vorazes desafiando os monstros da imaginação, sem segredos cáusticos agitando os nervos deste corpo de luzes brandas, aqui pousadas; os muros enredados e sobreviventes aos destinos dos homens abrindo feridas de desmoronamento no silêncio das pedras calcinadas, abordam o espaço pelo lado de fora, trabalhando na extensão do olhar; – sou o teu músculo pousado e ferido alongando a consternada brevidade da vida, isto dizem, num silêncio calcinado de luz cinzenta endurecida por um tempo sem tempo, morto tempo!… nada há de tão breve como a fugidia noite enlaçando as sementes que rugem ou os castigos em ebulição, lamentam os valados enredados nas divagações campestres. 

quinta-feira, setembro 14, 2023

modelações XXI

 

 

 
 
Construção  Desenho a grafite sobre papel

 104x79 Anos 90


O risco atravessa o corpo, chega à mão, vê pela ponta dos dedos a densa brancura, que afaga; mede o espaço cintilante, e, absorve o sopro do mundo como um dédalo de vozes numa madrugada azul; o caminho das sombras constrói segredos, o objecto é a maldição do olhar, crispa a retina numa alucinação de desejos, – fortuitas forças ocultas; eleva o além à substância da forma; retém o – amor louco – desbravando o contorno e a densidade do elemento, exaltando as quinas do destino na deriva da mão assustada; naturalmente há um pouco de loucura na desenvoltura que anima a imaginação como uma pequena febre da efabulação dos astros, a manhã dourada de reflexos e pensamentos; é preciso oferecer ao ofício a ternura cristalina do olhar e fundir o ver com o pulso –, o pulso é o poema em elaboração; voz que absorve os invernos soturnos, os dias amachucados, os ventos solitários e vazios –, o pulso vive no circo e uma criança de olhos amadurecidos observa o impalpável: a crista do papagaio que dança, o trapezista que anima a expectativa desdobrando a ânsia em pavor, – medo reluzente; aéreo e volátil num nevoeiro de sensações ingentes e absurdas o pulso fragmenta o objecto numa surdez luminosa, – implacável reunião dos atritos; é o desenho animado da sua pureza animal onde certos sintomas da razão se acumulam, como os bagos da romã acrisolados debaixo da casca, aí anichados com os segredos da matéria; é doce e áspero quando se risca o papel de lantejoulas; esta nudez é um longo exercício com pólvora animal, uma força côncava do ombro que serpenteia no olhar com afagos de mel e encarniçamento; riscar é soltar as labaredas da emoção, farfalhas do coração aberto e volátil como um sopro de angústia num jardim de rosas; necessita-se do silêncio da fala para que a desenvoltura do risco evolucione, crie raízes encostadas à razão, e o que estando vazio e morto como uma pérola, brilhe com soluços transparentes; se a voz navega à bolina pelo contorno afora vive o sujeito no seu mostruário de loucura, soprando como um camaleão com a língua de fora e unhas de lápis aceso, – já alguma vez desenhaste?  

 

 

quinta-feira, agosto 03, 2023

modelações XX

 

 

 
Homem na praia
  Desenho à pena - caneta rotring sobre cartolina e guache
 30x30 Anos 80

     

Que lonjuras, que desenhos levam as tuas guedelhas à paisagem agreste? Nas lajes inscreveste os dias rascunhando no tempo de todas as horas; no horizonte de incerta luz, arriscando o norte da paixão, adoras o sol no apelo à lucidez, dormes na azinhaga dos louros imortais, fabricas os óleos crepitantes! Pisas os tojos daquele real de pedra dura, rastejando paulatinamente, crescendo na lenta agonia do álcool, mordido por uma dor de estrelas e abraços das folhas secas; cresces em profusa lentidão dos dedos com os olhos presos aos ventos, pisando as cinzas com adornos de cristais; que lonjuras são estas crescendo nas cinzas com a lingerie dos ecrãs; das paisagens digitalizadas e deslizantes, com holofotes vertendo lágrimas pelo rabo; os cristais virtuais insonorizam os degraus que sobem ao tecto do absinto, como os vícios depenados; eu ando, tu andas, nocauteando o alcatrão que nos rodeia com os olhos assustados ao redor dos nossos encontros; o peso disso sobra em lágrimas pelos cantos da casa, derramando sobre o pulso a dor, tanto ao amanhecer como ao chegar; o rasto que alegra os olhos perdeu-se como fogo-fátuo, esburacando o nosso tempo onde ratos nos visitam de mansinho como chuva miudinha,   

isto será hoje, ontem ou amanhã?

Verdes são os ânimos correndo licorosos por azuis invertebrados, neste manso campo de florestais sentimentos; retinir de emoções e glórias sem cristas, pousada voz entre as folhas adejantes como água nos subúrbios da sede, – meia dança nos corredores da aflição; corre pela mão da ventura este sangue opaco, doce e raivoso de anéis rumorosos; derramou a era dourada vícios sobre os ombros ao transido homem? da caverna abeirou-se a náusea como sangue voluntarioso, crescendo o espaço na dimensão infinita dum querer macio e rugoso; chegados aqui, desavindos na prontidão dos sentidos, coado o sol com nostalgia, o bezerro de ouro solfeja danças do apocalipse e fumos das chaminés de aço.

Estou vivo, entre o amor e a morte acordaste em mim a névoa dos acordes musicais, o longe como raio de saudade na distracção da memória; na ópera das viagens pelas palavras abrem-se os caminhos que não foram, como os que aqui chegaram com as ligaduras nas mãos; todas as árvores que se soltaram dos olhos e pousaram nos calendários, alargando a vida como esponja das emoções, ora de asas de condor ora violadas pelos segredos dos corpos, ou os signos dos astros, habitantes de – para além de mim, como íngremes sombras das galáxias eternas dos sóis e vulnerabilidades dos noivados e dos pássaros, deixaram violentas recordações de ruídos;

o sol abre o espaço com os rústicos medos sobre as lajes, o calor que se solta das mentes poderosas, intuem desígnios da escuridão; os corpos beijam a saudade por dentro e o riso que estala na madrugada une os verbos às emoções.   

 


sexta-feira, junho 23, 2023

modelações XIX

 

 

 

O viajante 2   Pintura a óleo sobre tela

73x100 Anos 90

 

   Rapsódia delirante, o caso que a febre da viagem e o destino incerto do amanhã criou na distancia subvertida, com o sono da angústia, nos passos da multidão; todos viajam, constroem casas sem tecto, dando abraços à mudança; um passageiro do absoluto estar em andamento, como pulga voadora nos lençóis do noivado entre a terra e os oceanos; tapando a consternação dos abismos embarca-se nesse frémito desnudado; a sombra dos músculos gémeos, os braços e pernas da trapezista voadora ou o tendão de Aquiles de sonhos gloriosos, abrindo os domingos cinzentos de pesar aos frémitos das viagens, inundando os calcorreares dos viajantes convergindo sobre os passeios, de admiração e estranheza; estou aqui e estou ali como sinal fulgurante desta existência passageira, mas trémula de ânsias espelhadas nos hercúleos tecidos do nosso corpo, num triângulo daquele vai e vem sem remorsos pela água, ar e pastagem; sinto a ânsia do pé descalço pelos meandros do mundo, esse globo oxidado pela respiração dos calamitosos pássaros, insurgentes de vícios penosos e desastradas sacudidelas; borboletas ainda não cristalizadas de olhos abertos às paisagens de céus azuis, pelos cumes das montanhas sem fogo, ondulando em abraços à ventania dos cumes, crinas dos cavalos vertiginosos das estepes; sujeito este olhar às contemplações dos mistérios da aventura num triturar de ossos ao vento, catadupa de circulações no ventre desta terra; adorável rasgar do silêncio, viajo, e nutro o berço das vozes, – vaga dor dos lumes; sem sustos da navegação aí estou nos mares encrespados, aí, estou viajando; sem cortiça nos olhos galgo a neve dos montes, com asas nos pés abraço as cidades NY, S. Petersburgo, Roma, e porque não Lisboa, cidade que o rio abraça em estremeção de reflexos de aurífera seda; de viés às colinas os sonhos do Atlântico emergem e nutrem a vagabundagem amorosa como sombras da solidão; não há raízes do absurdo viver de que não nasçam estímulos da abundância nos passeios ribeirinhos; não há ângulos recto de casebre que nos não pertença numa solicitação de pasmo e admiração; janelas abertas ou fechadas como maçãs maduras penduradas ao sol, do sonhar, ou mesmo fechadas como arbustos secos e erectos, ligar-nos-ão às videiras em repouso nos campos abertos, como soluços do coração; abaixo a tristeza, esse veneno sem préstimo como nódoa gordurosa na solenidade dos dias prestáveis e inolvidáveis; rebentos de fornicações sem freios solicitando-se desarmaguradamente cheios de mel das viagens pelos continentes, se – mesmo estes não estão quietos – como posso eu resistir às comichões do ver aqui e acolá? – olhar o mar daqui e dali como noiva sempre jovem, o bater de asa nas praias solarengas, riscar ócios sobre os relvados azuis, bebendo sumos sem invernos nas mãos; vou dançar com os joelhos nas nuvens e os pés nas estrelas, necessariamente sem que o ar se transforme em perfume de raiva e alucinação.      

 

       

quinta-feira, junho 08, 2023

modelações XVIII

 

 

 
Projecto para um auto-retrato 90x60x5

Espeteira de madeira, escápulas, cordel

 e fotografias a sépia e preto

Anos 00 (2000) 

 

Vive o poema numa longa preguiça, abre o seu curso cosmos, trauloteia um verso de limão; há momentos que dizem não, chuva que cai sem peso; o poema vive uma longa preguiça, dizendo: – por aqui andaste, por aqui morreste com as ervas que abandonaram este solo; o poema arrasta uma longa preguiça como vidraça exposta ao sol; – burilado, recordo este lugar como uma mão decepada, um candeeiro partido e o folclore da luz do sol; é um peso esvaído em sangue púrpura, a língua de fora duma canção sem dentes; por debaixo da estátua passa o metro, subterrâneo que afoga de nostalgia os passos que outrora voavam na superfície, que, fiel aos rumores do dia, iam desenhando os contornos dessa realidade avulsa que sobeja do que vimos e assistimos prosaicamente; cantares para os sentimentos que dançam nesse degrau do tempo fustigado por incertezas e ambições;

Foi ali que a vida cresceu em ângulo recto! – o espaço marca o corpo, – refugiado num andar solene por ruelas e avenidas, construindo a percepção aos solavancos dos passos e do ver, vai-se decantando um real amorfo que nos afogaria na escuridão, zumbindo os sentidos em latas velhas com a ferrugem do desamparo; os sinais avulsos somam-se ao escrutínio dos bens ou dos azares, que preenchem os espaços públicos, com os vultos corporais adensando a atmosfera um tanto inócua e voluntariosamente indiferente; a bem de qualquer vertigem que desagúe em assombros, era nos espaços dos cafés que se construíam certas famílias de ganhos, pois aí se celebravam os ruídos animados das cruzadas conversas amontoando as percepções dos vários sentidos do estar; a carcaça do tempo ainda não tinha encrostado como carapaça de tartaruga, era líquido e voraz, acometendo contra o desperdício de não ser qualquer coisa: – laranja, limão, borbulha, calafate! – era outro o desabrigo que percorria o olhar quando se desvanecia em longos nenhures, fatias de realidade convulsa: – caixeiro-viajante, empregado bancário, filosofo de seda! – um caso perdido na bancada da vida, pensaria, testemunhando de dentro das tripas do coração, o peso desse mundo rodando aflito; a vertigem era o costume de os nervos sossegarem, – calos agoirentos vigiando nos adormecimentos;              

 – Viver apaixonado, nuvem esboçando os alaridos! Mas então porque não casar animando a crescida verdade dos encontros rutilantes, namorar afirmando a desenvoltura dos astros benfazejos, ter filhos adocicando os invernos inutilmente descoloridos? – o real estimula adendas, não fenecendo, todavia, enrosca o tempo numa vassalagem enigmática presa a substancias cruas; será que odeio o real, ou, será que o real me odeia? – questão tão solene que necessito da ajuda dum dicionário, dum tratado de filosofia onde os algoritmos da verdade não sejam uma hipótese entre infinitas outras, nem um bruxulear de luzes, mas algo como a dura morte;

O mundo é tão grande…! mas anda sempre de língua de fora como um cão com sede; seria necessário namorar para que a pele se tornasse transparente? Mas nem isso, ainda que na bainha dos acontecimentos ondas sufragassem o real de aflição líquido e patético, a pele não sofreu alterações; há tesouros imersos nos vendavais, pensaria o sujeito governado do avesso; então o cadáver mental reverbera seus acordes no prosaico e gelatinoso do –, ser ou não ser – como refresco na praia atormentada de fogo e música dos caranguejos; A dor não é visível quando se abraçam as solenidades nevoentas, e, o real penetra o subsolo de qualquer abstracção, não se verga ao inútil, à impossibilidade de caminhar e celebrar o seu peso e a sua forma.      

 

 

terça-feira, maio 09, 2023

modelações XVII

 

 

A Palavra - Branco e Preto 

Painel constituído por 9 quadros de 19x24 cada

 Anos 2000

 

Desajeitado estou, nada conservo de essencial, sinceramente, nos olhos, nas mãos, no interior ocupado das vértebras, na testa deslumbrada de ideais; as casas não têm portas para que eu entre, e o verde não sei se não será mais amarelo de chuva ou um prado de amêijoas abertas ao sol; à força de querer qualquer coisa adormeci plenamente; talvez tenha cara, cabeça e olhos –, é muito provável – mas onde está tudo isso, não sei; uma amnésia do coração abortou-me parado na vagatura do espaço como se o ar respirado não existisse, ou o próprio espaço tivesse fugido para o lado de dentro da incerteza; eu, vinha sonhando qualquer coisa, inadvertidamente, uma madeixa de cabelos no espelho, um salto no infinito por exemplo, ou uma plantação de cebolas nas luzernas da memória, talvez! Lamentavelmente nada disto pousou no meu cabelo –, não sou careca, é óbvio, e tê-lo-ia sentido – digo: qualquer coisa dessas ter-me-ia deixado uma ferida no horizonte, mesmo um pôr de sol de trovoada planando em círculos sucessivos, um candeeiro iluminando o sonhar ou um radar indagando o além; contudo, nada de lamentos –, se o mundo é redondo por que haveria eu de querer ser quadrado! e,  assim, nem uma coisa nem outra, suspendido como alguém que nunca tivesse nascido, fiquei atraído pelas palavras, apenas;  – uma espécie de dicionário fechado com imensos dizeres ocultos, com vozes que não se ouvem, paixões que não se entendem, nomes antigos e novos sem sentidos, coisas tão secas que nem casca têm; tentei dar um salto para fora, desembainhar os astros que marcam as horas e o respirar dos pulmões, solfejar na desdita o cântico dos cânticos, almejando ao silêncio das palavras como porta aberta para a vitória do sangue e da coagulação dos verbos, mas tudo em vão; obtendo assim os frutos descarnados do existir, fui surpreendido na comunicação sem fios como uma oração sem palavras; imaginei-me em ondas hertzianas saindo das válvulas que habitam em pesados aparelhos de rádios, fios ligando condensadores, pilhas a carvão e ácidos gordurosos, bobines e reóstatos de cobre por onde eu passaria, ainda que sem poemas na cabeça! – também para que serve um poema dentro duma válvula, ainda que acústica, emitindo electrões, positrões ou coisas assim?  – poemas podemos encontrá-los aos montões nas gotas de água.