terça-feira, maio 09, 2023

modelações XVII

 

 

A Palavra - Branco e Preto 

Painel constituído por 9 quadros de 19x24 cada

 Anos 2000

 

Desajeitado estou, nada conservo de essencial, sinceramente, nos olhos, nas mãos, no interior ocupado das vértebras, na testa deslumbrada de ideais; as casas não têm portas para que eu entre, e o verde não sei se não será mais amarelo de chuva ou um prado de amêijoas abertas ao sol; à força de querer qualquer coisa adormeci plenamente; talvez tenha cara, cabeça e olhos –, é muito provável – mas onde está tudo isso, não sei; uma amnésia do coração abortou-me parado na vagatura do espaço como se o ar respirado não existisse, ou o próprio espaço tivesse fugido para o lado de dentro da incerteza; eu, vinha sonhando qualquer coisa, inadvertidamente, uma madeixa de cabelos no espelho, um salto no infinito por exemplo, ou uma plantação de cebolas nas luzernas da memória, talvez! Lamentavelmente nada disto pousou no meu cabelo –, não sou careca, é óbvio, e tê-lo-ia sentido – digo: qualquer coisa dessas ter-me-ia deixado uma ferida no horizonte, mesmo um pôr de sol de trovoada planando em círculos sucessivos, um candeeiro iluminando o sonhar ou um radar indagando o além; contudo, nada de lamentos –, se o mundo é redondo por que haveria eu de querer ser quadrado! e,  assim, nem uma coisa nem outra, suspendido como alguém que nunca tivesse nascido, fiquei atraído pelas palavras, apenas;  – uma espécie de dicionário fechado com imensos dizeres ocultos, com vozes que não se ouvem, paixões que não se entendem, nomes antigos e novos sem sentidos, coisas tão secas que nem casca têm; tentei dar um salto para fora, desembainhar os astros que marcam as horas e o respirar dos pulmões, solfejar na desdita o cântico dos cânticos, almejando ao silêncio das palavras como porta aberta para a vitória do sangue e da coagulação dos verbos, mas tudo em vão; obtendo assim os frutos descarnados do existir, fui surpreendido na comunicação sem fios como uma oração sem palavras; imaginei-me em ondas hertzianas saindo das válvulas que habitam em pesados aparelhos de rádios, fios ligando condensadores, pilhas a carvão e ácidos gordurosos, bobines e reóstatos de cobre por onde eu passaria, ainda que sem poemas na cabeça! – também para que serve um poema dentro duma válvula, ainda que acústica, emitindo electrões, positrões ou coisas assim?  – poemas podemos encontrá-los aos montões nas gotas de água.