sexta-feira, outubro 07, 2022

modelações IX

 


 O homem na cidade IV

 Desenho a grafite sobre papel 21.5x16.5   1976

 

 

A eternidade é um presente amargo

 – Viajando no infinito

     um mínimo sinal

O silêncio de agulha

naufraga  nas pupilas

 

Suponhamos que o vai-e-vem que nos sufoca e nos acorrenta, desliza até às madrugadas dum devir de inaudito tempo: – carros automóveis fortificando o espaço, horários embelezados atravessados nos dias quentes e frios, chuvas torrenciais abrindo buracos nos idílios etéreos, esgotamentos inopinados nos hospitais sem músculos, benévolas tristezas madurando no ventre humano, fissuras no mundo vegetal; acariciando as atribulações constroem-se os grandes espaços da alegria: armazéns de mercadorias mundanas segregando a paixão dos olhos, realejos apregoando sem descanso novas matérias, anúncios exalando vertigens vertiginosas sem desgostos acumulados, dores abdominais sintetizadas nos fármacos; tudo ensaiando a grandeza do eterno tempo como luva cobrindo a mão e os dedos, naturalmente! 

Muitas sombras persistem aí como formigueiros enterrados nos confins da natureza, manchas que sobem à luz com um brilho baço a soltar-se dessa escuridão avulsa rodeando tanto o interior da terra como as circunvoluções da mente, por vezes; sinais densos que ficam povoando os interstícios melancólicos do corpo, não deixando que este se apague numa tristeza vil ou amaldiçoada de carne envelhecida.  

Naquele em que as andorinhas dormiam sossegadas nos beirais, as árvores esgrimiam os seus odores perfumados na atmosfera dulcificada pelos matizes da terra branda, as vozes do interior diziam dos recados dos falantes, primazias de cultos antigos que habitavam os tremores do mundo qualificável; era assim um endosso mergulhando nas planícies esverdeadas e garbosas, fundando raízes, não eternas, como sabemos; dormindo cabisbaixo sob a via láctea, o céu da noite era um enxame de abelhas luzidias sem fim, um cântico fervoroso de paixão nocturna abeirando-se dos nossos louvores.

 Muitas sombras persistem aí, como nevoeiro embalando a imensidão!

No palco, dançantes meneiam as virilhas, ondulando as ancas em sacudidelas, diria, – ferozes, se os estrupidos dos ossos fossem audíveis aos murmúrios das mentes galvanizadas; eu estava lá; Estive; alucinado? – nem tanto; aferrolhando o olhar contra os corpos em movimento, dançando ainda com os dentes serrados, tenso, (e) sem gestos por fora que denunciassem esses demónios que outrora me haviam habitado agora renovando nas lembranças os seus ácaros internos, ao diapasão musical, – inverno dos coloridos ossos.

 Muitas sombras persistem, como cataratas densas dentro dos ecrãs!

Depois daquele, o mundo cirandava nocturno e fervoroso; aquele outro, inundava os pensamentos com abundância de vertigens desassombradas; eram lágrimas contra as apoteoses, cicatrizes sobre o verniz mole da secura do tempo, bainhas dos tecidos de seda deslizando como marés tormentosas sobre o corpo em andamento; não havia intervalos para músicas sulfúricas, cânticos de brilhantina expandindo que entrassem pela pele enrijecida; aposentos com pouca luz acariciando as antas do coração; onde se vivia era um círculo fechado sem afectações dos espelhos, ruído de angústias e pavores, mas ainda assim, fértil de branduras costumeiras não rasuradas.

 Muitas sombras persistem em surdina de vozes abismadas

Na vertigem do assombro calcula-se o prosaico com as medidas carregadas de matéria subtil, espiras sinfónicas calcorreando os laços com alturas caleidoscópicas, Platão, Schopenhauer ou Nitche, - s faz f! e os vícios melodiosos que embalam os continentes melodramáticos, tornam-se agastados redutos da mente, forças anónimas do empobrecimento nervoso como nódoas de gordura no tecido de seda, –  mel dos tecidos alumbrados.  

Muitas sombras persistem na curva das despovoadas sobrancelhas

Por esta noite, ébria de luzes, quando os aborrecimentos se julgam presos nas gavetas fechadas, ganham-se impulsos da maquinaria dos êxtases, fervendo os músculos, com paixão, nos fogos de animação acústica; poemas esfrangalhados dos esqueletos quando as articulações se enfocam na sua total dinâmica, toda poderosa, – ginástica dos amores incontidos; reside aí a abundância de sofrimento, pois todas as náuseas, todos aqueles grossos pedaços de angústias e pesadelos são chamados à sua dissolução, emergindo momentaneamente das lágrimas avulsas, a acre doçura, como sumo de limão espremido; é uma sessão solene sustida pelo pavor à morte, à solidão envenenada pela beleza exangue; dei a mão ao meu passado e verifiquei que estive lá; estou ainda aí no fulgor duma sombra que se aninha com um sol parado, estático e mudo, sem dentes para mastigar o real.