quinta-feira, junho 05, 2025

modelações XXXVIII

 

 Modelações XXXVIII

 
Em Movimento - Pintura a óleo sobre madeira prensada

59x70cm  Anos70

 

O 25 de Abril e a memória encantada; do ante diz-se; e do até lá…, o subir do monte na glória vã de um sísifo, e os espinhos dolorosos da ventania, derrubando troncos e braços, com o frenesim das mordaças –, do empurrar gentes exangues e tolhidas que ficam na amargura despovoada e abandono; espaços insalubres dos territórios alheios dos muitos continentes; do viver de pés descalços nos caminhos enxertados das arruaças; da sobrevivência alcantilada e fria, como musgos arrebatados e impotentes, agarrados ao chão como lesmas desvalidas, que se enfunam. Entrementes. A máquina de furar olhos e, aquela, de esgravatar nas orelhas, empurrar as palavras para os calaboiços, comprimindo-as, deixando rasuras de sangue, atrofiando os adjectivos nas masmorras do insignificante –, o antes que adormece na soleira da porta, o durante que dura e rói; até lá, o peso da montanha sobre o vale; a dor inquieta do silêncio, o martelo nos dentes, a boca encarnada cuspindo sangue; no café à mesa, a conversa em surdina – poderá a voz romper o ar, prosseguir no espaço e cair nas orelhas de um outro que mastiga as vísceras com dentes de cão, ódio musculado de grilhetas – nunca se sabe! – o que ensombra as ruas, o que pesa sem se ver, o que fere e se expande, o que leva para a escuridão, o que dorme nos vãos de escadas e rói degraus; em rostos desvanecidos vírus sem nome! Lá fora há hinos, colchas penduradas nas ideias em circulação; chegam pelos fios iluminados, pelos correios de mão em mão, pelas espiras que soam cantigas, pelos livros e jornais escondidos nos forros dos casacos; gatunos que roubam a claridade escondida, abocanhada na ponta dos lápis azuis vermelhos, (da censura), oferecendo-a incólume e resolutamente na eira; postigos que se abrem; da esconsa quietude daqui, ouvem-se tiros lá longe; os generais cospem anedotas! Noivas choram, mães vestem panos negros, duros como cavernas, em lugarejos soturnos. O pão sobre a mesa esfarela-se em surdina. Nos arraiais dançam com frio nas orelhas e mangas arregaçadas; arrasta-se a solidão e o clamor do orgulho; um rumor de passos ouve-se na varanda, no sopé da montanha ruge o absurdo; estica-se o elástico por debaixo das mesas, nas associações, nas escolas, nas cantinas, nos redemoinhos que se mexem escondidos, presos às borbulhas do viver, ou morrer; um ritual de pressupostos e um níquel de ânimo avança, e as ruas enchem-se entoando os punhos, abrindo a escuridão das algemas; estamos lá, a parada move-se, ouvem-se vozes que choram! De alegria.

Mastigando democracia num inverno acrobático, 50 mastigados anos passaram; pão com manteiga e vidros de aflição, enroscados nos parafusos do destino –  pão ázimo; alapardados de mosquitos da liberdade, correndo atrás dos entulhos saudosos, cá estamos! – Há vozes que oiço –, o 25 de Abril será todos os dias… ou não será! Dizem, de lá, os mortos que nos alegraram.  

 

domingo, maio 25, 2025

modelações XXXVII

 

 
Ausências
 Pintura a óleo e lápis de cera sobre fundo de madeira
 96x64 Anos 10
 
Vogando no sentido aéreo da existência, na transparência da emoção sob as curvas desenhadas dos jardins, sobre a relva, debaixo dos ramos e sua sombra projectada na glória dos tímidos passos; tilintando as pegadas, esfregando os lençóis dos desejos, despojos dos sonhos ultravioletas acomodando as ambições veneráveis dos sentidos como substância palpável; andar de esquecimento à parca realidade circundante, volátil abeiramento do outro e suas glórias verticais ascendendo, mitigando; – sigo a névoa deste caminhar, pisar dos meus passos deambulando na irmandade do folhedo; jardim de árvores roçagantes incendiando a auto-estima na praça pública; alegre ribeiro dialogando nas margens; o cheiro do alecrim nestas palavras, digo, torpedeando os seus segredos, os seus ângulos secretos que mansamente nos atormentam; esta púbica saudade de mim sem transe no vértice prosaico da hora, arrumando o quarto de lua no átrio da casa; o corpo desolado num arco-íris permanecendo intacto e fortuito, fermentando na lonjura, esponja de sangue abreviada num tempo de dúvida e sigilo; os continentes da solidão movendo-se na incerteza das promessas –, corro, e regresso entre os ramos que me adornam como coroas duma alegria sustida, suspensa e balançante; surdina de emoções roçando a pele como pássaros cantando nos nervos –, Ó pureza suplicante ajeitada à planta dos pés que caminham na sombra das rosas e dos temores; espigas, tão duras na manhã silvestre, caindo este prazer no chão que a terra veste; flores do campo que me olham no lilás dos seus olhares crescendo, balão ao som dos ritmos banais e destruidores; torturar a realidade, procurando-a como formiga no carreiro, dar voz ao silêncio sacudido pelas palavras. Mutilados encontros.

 

sexta-feira, abril 25, 2025

modelações XXXVI

 

 A Cátedra 
Trabalho realizado e exposto no âmbito da inauguração
 da Biblioteca de S. Brás de Alportel sob o tema O Livro de Artista
 Anos 90

 Silenciou-se a escrita!? – somente o desejo de alabastro, obediente cadastro da palavra à tona da vida, habitando a noite da eloquência, sondando a emoção em sobressalto, assinala a sua escassez; desse lastro duma realidade ferida, sobejando da penúria das lágrimas a gizar os contornos do texto, o vocabulário dissipando-se na sombra do lume, substância dos nomes presa nas agruras das letras, onde o apertar das mãos, desenhando-as, é um terçar de armas, o que se perde fica; o perdido: – viagens com os endereços da prontidão, encontros e as suas marcas na epiderme, verdes ramos ondeando nos labirintos da mente, ninhos de luz subindo das amizades merecidas, pássaros chilreando nas campinas da criação, azul fundindo os enclaves da prostração e a lírica da écloga –, rasgos estes que definhando escurecem na redacção, – bailação no refluxo das invernias.

Chegado aqui pelo esquecimento, nuances da sintaxe arrastada pela lama corporal, o ver pela fenda do eu adormece como criança com sono de gomos de laranja verde, – peito da mãe habitado de volúpia.

Lembro que escrever é viver! A palavra consubstancia a noite, a clareza da carne, a pele dos sonhos florescendo nas nossas verdades; a coesão corporal ouvindo-se na voz repercutida, – fluxos da natureza errante. Renova o ambiente como árvore florida na floresta perdida; diz da fome e da luxúria, da guerra e do desaire; anuncia o mundo e o intemporal, – força gravítica deambulando. Deste solto olhar, nele, se envolve o silêncio, como esqueleto perdido sobre a cinza, ou uma trança caída no chão.

Espero! Uma laranja podre enche-me de alegria, pois ela diz-me: – nem só o bom existe, e é crua a presença que subverte; a mosca alegra-se com a merda, as flores murcham, o peixe cai no anzol; a palavra escalda o ambiente murmurante. Se neutra, envelhece –, silenciou-se a escrita e tenho sono, tristeza no olhar!

 Adensa-se a curva amolecida das palavras, o vocabulário que fica na penumbra. Esperando, tomo um café, a esplanada é singela, sem adornos de relvas e palmeiras; vedação de toscos troncos com sulcos em espiral, fugindo não se sabe para… dilatando as angústias como feridas no ventre do tempo; natureza seca, instável; lixo, alcatrão como o corredor da casa infinita e sem janelas, balde do lixo, muro e sebe sobre… o som da máquina que fumega, o trabalho rompendo o estático chão com alento; construindo. O céu muito azul visto com óculos de sol, nuvens branco cinzento entre mim e a eternidade; espaço louco; garrafa plástica sem água, chávena e pires; a mão alevantando as palavras –, charrua da comoção do verbo. O travessão na escrita.      

 

 

sábado, março 01, 2025

modelações XXXV

 


O Homem Virtual  Pintura a óleo sobre tela

 35x27cm  Anos 00

 

Tanto tempo na eternidade, e este pequeno ser, onde qualquer verdade morre, em se morrer!

Sobejamos sempre sobre a carcaça do tempo, nascemos com o defeito de ser vivos rastos, inquietas multidões; navegadores deste além que nos dá o calor e o movimento, o ardor e a frieza dos beijos desesperados, viajamos na ordem cósmica como nabos enterrados na charneca; no solo, sobre as ervas da nossa solidão, quebram-se os espelhos que reflectem os desejos sofisticados, as ligações que brilham nos efusivos encontros das mãos com os livros e as rosas, – esta pesada angustia de carrossel;  

 conseguir avançar, é um laço amargo de negruras como cantos de sereias nas varandas dos desertos; ser orgulhosos de nós próprios consome-se num desafio maculado e sempre hibernando; fóssil nas neves eternas –, ser danado?! – entropia de veneno como sal amargo e duvidoso; vamos construindo sobre um tempo desajeitado a história, nossa!

Quebra a prontidão, que nos animava para aqueles encontros mapeados nos canteiros e nas florestas, como pepitas na foz dos nossos destinos; Fim da história? – uma falácia! Bebendo o açúcar do depois pela janela do ontem, caem folhas num Outono de febre-amarela, e o andar logo riscado pelos cardos dos jardins, pesam nas algibeiras; mas, os contornos que nos sopram de dentro dos ânimos nossos, como sementes em ebulição na terra muda, falam-nos, e dizendo nos vão –, é bom viver nos anéis desta longa marcha, como aves de arribação, sujeitos a um vento que sopra frio e sem pétalas, apesar de! – Arribar na sílica dos rumores do coração; transitar entre a fortuna e os corpos desnudados; dar passos com a alegria dos sonhos –, é bom? – as árvores crescem em sintonia com o vento, o sol, a água e o húmus –, morrem de pé – de raízes agarradas ao chão como féretros da melancolia.       

 

    

sábado, janeiro 04, 2025

modelações XXXIV

 

 
 Mulher e homem - Escultura em bronze 40x21x16 Anos 80

Discorrer sobre o mudo!? … ora essa! – o mundo corre ligeiro atrás das minhas costas, e é tão pesado sobre qualquer olhar que – penso eu, mais vale ir até à praia; aí os meus olhos espraiar-se-ão na maré vasa, e na maré cheia até poderei cuspir na água salgada, sem remorsos; deponho a cabeça enterrando-a na areia – simbolicamente, claro! e vou andando de costas voltadas para aquele todo que é esse pedregulho redondo e sem sentido; entre a alegria e a morte a inexorável viuvez do amor, os tropeços nas palavras ou a trituração dos algoritmos errantes das paixões; o mundo naturalmente que se encontra escurecido nas entrelinhas, mas não, não é culpa minha; eu lagarto estendido ao sol jamais debitarei nenúfares para as entrelinhas; a sagacidade é um fruto da importância neural debitando as verdades eternas como as compras nos supermercados, as flores brancas dos amendoais nas plantações do desespero ou a elevada consciência das formigas nos carreiros; um vício de deslumbramento é dar importância às balas que sussurram nas entrelinhas; estar atento é uma merda; será opaco o mundo?

 – entrego o corpo às folhas verdes, é minha a luz que as penetra –, de alegria breve.

– por cima da tua dor um abraço enorme e vertiginoso deste silêncio.   

            

segunda-feira, dezembro 23, 2024

modelações XXXIII

 

 
A Palavra  adjectivos
 (Painel constituído por 8 quadros  40x50cm Anos 2000 
 

Abrindo a voz, ouço os recônditos objectos que nela falam; o obscuro silêncio é luminoso e a mão que o segura desenha os seus contornos;

 – ossos, abre na noite o tumulto dos olhos, despe o noivado dos encontros, respira fundo sobre o degredo – manhã, ó rosas desmaiadas nos jardins suspensos, canto dos canteiros cantando nos átrios das mansões, flor ou o delírio do envolto na penumbra do centro certo, para lá da pétala o adeus ao vento, ó sonho da noite que acorda – rosto, toda a navalha cinzelando o aberto, que dizer das pestanas vivas como agulhas, bocas como fogo nas mãos desertas, em ti sopram em tormenta os desígnios juvenis, e as faces dançam na madrugada dos sóis, despem-se em aromas os quase mudos sorrisos – verde, toda a árvore é um desejo, o chão vestido cantando, um avental cobrindo os nervos sedosos que no terreno esburacam – fósforo, lenta dor que vegeta no silêncio, pedra dos amantes que naufragam e se consomem na combustão dos olhares, rumores de um presente anoitecendo nas favelas os lumes dos vivos – tabuada, ó glória do saber abstracto e singelo, toada mortiça dos rabiscos nas ardósias, palmatórias subindo das entranhas como venenos da saudade – alecrim, diadema do fogo nas noites de camurça saltando à fogueira, tonturas do vento em vertigem romanesca, nas labaredas ouvindo os sustidos sons das lágrimas, o crepitar dos desvalidos e dos amantes

Na palavra o imenso apaixonado abre-se, fustiga o coração como o canto das canoras aves, busca o fazer das mãos enquanto os olhos ardem como cavalos nas montanhas – o óbvio é um objecto sem destino.