Projecto para um auto-retrato 90x60x5
Espeteira de madeira, escápulas, cordel
e fotografias a sépia e preto
Anos 00 (2000)
Vive o poema numa longa preguiça, abre o seu curso cosmos,
trauloteia um verso de limão; há momentos que dizem não, chuva que cai sem
peso; o poema vive uma longa preguiça, dizendo: – por aqui andaste, por aqui
morreste com as ervas que abandonaram este solo; o poema arrasta uma longa
preguiça como vidraça exposta ao sol; – burilado, recordo este lugar como uma
mão decepada, um candeeiro partido e o folclore da luz do sol; é um peso
esvaído em sangue púrpura, a língua de fora duma canção sem dentes; por debaixo
da estátua passa o metro, subterrâneo que afoga de nostalgia os passos que
outrora voavam na superfície, que, fiel aos rumores do dia, iam desenhando os
contornos dessa realidade avulsa que sobeja do que vimos e assistimos
prosaicamente; cantares para os sentimentos que dançam nesse degrau do tempo
fustigado por incertezas e ambições;
Foi ali que a vida cresceu em ângulo recto! – o espaço marca
o corpo, – refugiado num andar solene por ruelas e avenidas, construindo a
percepção aos solavancos dos passos e do ver, vai-se decantando um real amorfo
que nos afogaria na escuridão, zumbindo os sentidos em latas velhas com a
ferrugem do desamparo; os sinais avulsos somam-se ao escrutínio dos bens ou dos
azares, que preenchem os espaços públicos, com os vultos corporais adensando a
atmosfera um tanto inócua e voluntariosamente indiferente; a bem de qualquer
vertigem que desagúe em assombros, era nos espaços dos cafés que se construíam certas
famílias de ganhos, pois aí se celebravam os ruídos animados das cruzadas
conversas amontoando as percepções dos vários sentidos do estar; a carcaça do
tempo ainda não tinha encrostado como carapaça de tartaruga, era líquido e
voraz, acometendo contra o desperdício de não ser qualquer coisa: – laranja,
limão, borbulha, calafate! – era outro o desabrigo que percorria o olhar quando
se desvanecia em longos nenhures, fatias de realidade convulsa: –
caixeiro-viajante, empregado bancário, filosofo de seda! – um caso perdido na
bancada da vida, pensaria, testemunhando de dentro das tripas do coração, o
peso desse mundo rodando aflito; a vertigem era o costume de os nervos
sossegarem, – calos agoirentos vigiando nos
adormecimentos;
– Viver apaixonado,
nuvem esboçando os alaridos! Mas então porque não casar animando a crescida verdade
dos encontros rutilantes, namorar afirmando a desenvoltura dos astros
benfazejos, ter filhos adocicando os invernos inutilmente descoloridos? – o
real estimula adendas, não fenecendo, todavia, enrosca o tempo numa vassalagem
enigmática presa a substancias cruas; será que odeio o real, ou, será que o
real me odeia? – questão tão solene que necessito da ajuda dum dicionário, dum
tratado de filosofia onde os algoritmos da verdade não sejam uma hipótese entre
infinitas outras, nem um bruxulear de luzes, mas algo como a dura morte;
O mundo é tão grande…! mas anda sempre de língua de fora
como um cão com sede; seria necessário namorar para que a pele se tornasse
transparente? Mas nem isso, ainda que na bainha dos acontecimentos ondas
sufragassem o real de aflição líquido e patético, a pele não sofreu alterações;
há tesouros imersos nos vendavais, pensaria o sujeito governado do avesso;
então o cadáver mental reverbera seus acordes no prosaico e gelatinoso do –,
ser ou não ser – como refresco na praia atormentada de fogo e música dos caranguejos;
A dor não é visível quando se abraçam as solenidades nevoentas, e, o real
penetra o subsolo de qualquer abstracção, não se verga ao inútil, à
impossibilidade de caminhar e celebrar o seu peso e a sua forma.