sexta-feira, março 02, 2018

os corredores habitados




cresci apanhando caracóis…, quando a água das chuvas enchia o habitat natural de gotejos e humidade, esses casa andantes de mochila calcária às costas, pareciam vaguear lentamente, deliciados, pelas pedras dos valados, no chão terroso ou subindo pelos caules das plantas rasteiras; surgiam dos coutos onde se escondiam, rastejando os corpos lassos e viscosos; rastos de baba marcavam o testemunho das suas passagens dando um toque de verniz às pedras; por vezes cruzavam-se delineando percursos distintos, aliciados pelo acaso dos diferentes aromas das frescas pastagens; bichos de catadura nocturna, a noite escondia-os da depredação, mas o pernaltudo humano não se deixa levar pela moral dos sentidos, e, a ética dos costumes acaba por ser um calendário da sobrevivência; - pela noite, à luz macilenta de um pneu ardendo, dolorosamente enfeitando-a de fuligem, os caracóis eram arrancados ao esteio natural das suas vidas para a rapacidade do apetite, - vertigens da sobrenatural caricatura da existência; - leva-me a escrita ao espaldar desta janela por onde espreito até ao rumorejar das noites de aço, - a densa madrugada dos sentimentos, a fosforescência da auto-estima nos devaneios precoces, - que fazia essa moldura de lampejos nocturnos lavrados em cestas de moluscos? - raiz dos sentidos vários madurando, envolvência dos olhos eloquentes, substância ácida da alegria; - o cheiro a borracha ardida rescendia ferozmente nas narinas, juntando-se ao acre labor da terra húmida, que, espargindo-se, se misturava ao fedor sulfuroso do alcatrão; da ponta onde a língua de fogo, esgueirando-se, tinha o seu último alento, levitando em arabescos de pesadelo, saltava um fio de estearina espessa, volutas de fumaça negra ao bamboleio da chama amarelada, - enterro da pequena luz na imensidão celeste; despedida da chama, sacudida pela aragem, a frouxa iluminação apalpava o espaço em redor e furava no carvão nocturno, cambaleando entre o vivaz e o lúgubre, - descoroçoados ânimos; - os pirilampos na terra desafiam as estrelas no céu, uma força antiga acompanha em surdina as chamas que se apagaram, como se uma caixa de fósforos tivesse viajado na escuridão prestes à sua eclosão, dilatada até ao recolho de todo o sentimento, - o duro negro da noite, enche prenhe a viuvez desses momentos, - restos do elixir nocturno ou o alabastro da meninice; - descubro a ênfase posta nos dias quando nas valetas escorria um regueiro borbulhando entre os estorvos das pedras e das serralhas; estas, que mais tarde iriam alimentar coelhos, porcos e caracóis, - troca onde o vazio do universo se esconde, sacudindo a angústia dos seres vivos para o lado de fora do animal, verdade embebida na fantasia de um olhar distante; - entre as almofadas das nuvens andarilhas, resplandece o sol, atirando sombras de veludo para o chão, e, enquanto a avidez dos insectos planava em acrobacias entre os tojos, mariolas ou funchos, os zumbidos rolavam nos ouvidos, alimentando o fremir perpétuo evolando das artérias e dos fluidos abissais  até à superfície da pele, - trechos musicais do assombro que se alapam à luminosidade dos caminhos; a vitória porosa da bicharada em transe de núpcias; - vertiginoso é o prazer, quando o azul dos lírios cai de entre as suspensas águas, e a intensa sensação de um delírio desperta o ânimo resoluto; - por vezes chuvisca e faz sol – e as bruxas a fazerem pão mole, cantavam os costumes –, enterrado numa perspicácia ingénua, enfarpelado, debaixo de chuva, violando os endereços da razão, saía lampeiro com a lata pendida da mão, em busca dos peregrinos que se desunhavam pelas paredes e pequenos vales; à transparência da água observava o musgo e líquenes que se inclinavam em doces vénias, ao sabor da corrente; cobriam o fundo das valetas os matizes viridentes onde os olhos escoavam a primazia dos afectos, - prestadora moral de ausentes servidões, pastoral dos rútilos cantos; - por baixo do azul índigo inflamado de glória, súbito os cúmulos acinzentados vogando lá em cima, despejam rebuliços de água e ensopam chapéu, casaco e calças, - dos caracóis mouros e caracoletas, restará o musgo dessa verdade, embebido na fantasia de um olhar distante, - talvez, uma saudação daqui como obituário dos fortes acontecimentos, - fonte procurada da Fénix renascida sob o cascalho das madrugadas