cresci apanhando caracóis…, quando a água das chuvas
enchia o habitat natural de gotejos e humidade, esses casa andantes de mochila calcária às costas, pareciam vaguear
lentamente, deliciados, pelas pedras dos valados, no chão terroso ou subindo
pelos caules das plantas rasteiras; surgiam dos coutos onde se escondiam,
rastejando os corpos lassos e viscosos; rastos de baba marcavam o testemunho
das suas passagens dando um toque de verniz às pedras; por vezes cruzavam-se
delineando percursos distintos, aliciados pelo acaso dos diferentes aromas das frescas
pastagens; bichos de catadura nocturna, a noite escondia-os da depredação, mas
o pernaltudo humano não se deixa levar pela moral dos sentidos, e, a ética dos costumes acaba por ser um
calendário da sobrevivência; - pela noite, à luz macilenta de um pneu
ardendo, dolorosamente enfeitando-a de fuligem, os caracóis eram arrancados ao esteio
natural das suas vidas para a rapacidade do apetite, - vertigens da sobrenatural caricatura da existência; - leva-me a
escrita ao espaldar desta janela por onde espreito até ao rumorejar das noites
de aço, - a densa madrugada dos
sentimentos, a fosforescência da auto-estima nos devaneios precoces, - que
fazia essa moldura de lampejos nocturnos lavrados em cestas de moluscos? - raiz dos sentidos vários madurando,
envolvência dos olhos eloquentes, substância ácida da alegria; - o cheiro a
borracha ardida rescendia ferozmente nas narinas, juntando-se ao acre labor da
terra húmida, que, espargindo-se, se misturava ao fedor sulfuroso do alcatrão;
da ponta onde a língua de fogo, esgueirando-se, tinha o seu último alento,
levitando em arabescos de pesadelo, saltava um fio de estearina espessa,
volutas de fumaça negra ao bamboleio da chama amarelada, - enterro da pequena luz na imensidão celeste; despedida da chama,
sacudida pela aragem, a frouxa iluminação apalpava o espaço em redor e furava no
carvão nocturno, cambaleando entre o vivaz e o lúgubre, - descoroçoados ânimos; - os pirilampos na terra desafiam as estrelas
no céu, uma força antiga acompanha em surdina as chamas que se apagaram, como
se uma caixa de fósforos tivesse viajado na escuridão prestes à sua eclosão, dilatada até ao recolho de todo o
sentimento, - o duro negro da noite, enche prenhe a viuvez desses momentos,
- restos do elixir nocturno ou o
alabastro da meninice; - descubro a ênfase posta nos dias quando nas
valetas escorria um regueiro borbulhando entre os estorvos das pedras e das
serralhas; estas, que mais tarde iriam alimentar coelhos, porcos e caracóis, - troca onde o vazio do universo se esconde,
sacudindo a angústia dos seres vivos para o lado de fora do animal, verdade embebida na fantasia de um olhar
distante; - entre as almofadas das nuvens andarilhas, resplandece o sol,
atirando sombras de veludo para o chão, e, enquanto a avidez dos insectos
planava em acrobacias entre os tojos, mariolas ou funchos, os zumbidos rolavam
nos ouvidos, alimentando o fremir perpétuo evolando das artérias e dos fluidos
abissais até à superfície da pele, - trechos musicais do assombro que se alapam à
luminosidade dos caminhos; a vitória porosa da bicharada em transe de
núpcias; - vertiginoso é o prazer, quando o azul dos lírios cai de entre as suspensas
águas, e a intensa sensação de um delírio
desperta o ânimo resoluto; - por vezes chuvisca e faz sol – e as bruxas a
fazerem pão mole, cantavam os costumes –, enterrado numa perspicácia ingénua,
enfarpelado, debaixo de chuva, violando os endereços da razão, saía lampeiro
com a lata pendida da mão, em busca dos peregrinos que se desunhavam pelas
paredes e pequenos vales; à transparência da água observava o musgo e líquenes
que se inclinavam em doces vénias, ao sabor da corrente; cobriam o fundo das
valetas os matizes viridentes onde os olhos escoavam a primazia dos afectos, - prestadora moral de ausentes servidões,
pastoral dos rútilos cantos; - por baixo do azul índigo inflamado de glória,
súbito os cúmulos acinzentados vogando lá em cima, despejam rebuliços de água e
ensopam chapéu, casaco e calças, - dos caracóis mouros e caracoletas, restará o
musgo dessa verdade, embebido na fantasia de um olhar distante, - talvez, uma
saudação daqui como obituário dos fortes acontecimentos, - fonte procurada da Fénix renascida sob o cascalho das madrugadas