no ano de 1964
À noite, depois do jantar, a campainha retinia, e o amigo lá estava à porta da entrada enfeitado pelos nossos encontros, pela aura noctívaga da solicitude; caminhávamos par a par numa vibração sem atritos sonoros pisando a calçada miúda à portuguesa, em direcção à Avenida da Igreja; através dos amplos vidros e a farta iluminação de néons fosforescendo de branco leitoso, do lado duma escuridão frouxa para o espaço contíguo do café Astória, via-mos as mesas repletas de clientes, aqueles do depois do jantar...
na rua transversal, num minúsculo café que se escondia entre lojas de artigos domésticos, construíamos a nossa noite;
colocados os livros e as revistas que nos acompanhavam sobre o tampo da mesa ao fundo, debaixo da televisão embicada no alto como foguetório de aleluias, o estribilho da conversa circula em torno da arte, dos artistas e da pintura, – doída festa de encontros; consultavam-se os livros onde as rosas expectantes abriam pétalas de desejos...
líamos nos desenhos de Matisse
os pequenos encantos dos objectos caseiros enroscados ao quotidiano dos
lazeres, da ternura do espaço que os envolve na voz lírica dos poemas visuais;
sobre o papel lustroso do pequeno e soberbo leque de folhas, passavam as nossas
mãos burilando os sentidos nervosos do ver e sentir; o Brueghel com o seu povo curvado carregando as infinitas histórias em
cenas apocalípticas, merecia uma atenção meticulosa, uma leitura judiciosa das
figuras e dos seus actos mirabolantes; um carnaval de paixão amedrontada sai
daqueles rostos...
escondidos debaixo do televisor devolvia-se à noite os seus odores e fogos do dia com a passagem das horas suspensas na injunção dos sentimentos, – esboços das águas flutuantes;