quinta-feira, maio 19, 2022

modelações III

 

 

 
Dispersão - desenho a tinta acrílica sobre cartolina duplex

70x100 - anos 80

 

Modelações III

O universo é imperfeito, assim como a razão; dois buracos infinitos em fusão continua onde habita a dúvida, recheada de laranjas verdes e olhos devassos; há um consolo esfusiante em apalpar espaços neutros guardados em cofres sem angústias, residem aí, igualmente, prosaicos afectos das mãos limpinhas, – lixívias com aromas; nas manhãs invernosas os ácidos da mente enxotam as moscas pousadas na merda do tempo, – deste tempo! daquele ou de todos os tempos; espécie de raiva cavernosa ensaiando o poder do desastre, envolto nas cavernas da noite, – maleitas da carne viva;

os narizes do infinito espirram incessantemente sobre a pele da terra mãe, depois, aspiram o úbero selvagem e doce da atmosfera lavada, – carcaça da razão pura; a poesia esbraceja ao jantar; ah, se pudesse espraiar-me ao sol como lagartixa pela manhã! limpar a pele do sono com malvas das ribeiras, abeirar-me do infinito com a mão estendida sobre a pedra madura!? o consolo que me habita é um desastre da memória alada, um frenesim de enxame que subjaz ao poente da manhã, num vai e vem de retórica selvagem aposto à ginástica do umbigo, – carvão da mente exuberante;     

os riscos da mente enfatizam os poderes absolutos dos buracos do universo; nada há mais poderoso do que um verme cheio de fome, um qualquer sorriso em contra-mão; um peso morto vivendo na adoração dos astros iguala-se a uma unha encravada, à respiração sustida pela cinza do amor; extrai-se da magnitude universal a densidade do olhar num crepitar do coração alvoraçado; fica-se atormentado com a mosca limpando os suares da cara, zurzindo sobre os passos em falso; enforca-se a delicadeza da razão, – paraíso sem luxúria.