Mulher - estudo para uma escultura
Desenho a grafite sobre papel 29.5x21 Anos 70
Tão clara é a noite como o dia quando os olhos adormecem, e, neste viver acrílico que a abundância nos trás, o amor deita fogo ao deserto; falta-nos o azeite das luzernas, e a levedura do fermento advêm melancolia crispada; cresce o súbito acento das vozes como pão inflamável; sobre uma mão que se dá com sede e sem dedos de chuva, estou aqui medindo a quantidade de inverno que falta para que possamos ainda usar o chapéu-de-chuva, vestir risos sobre as árvores, dormir com as suas folhas como companheiras dos devaneios diários; calçar os sapatos domingueiros, beber a bica na esplanada aqui próxima, tirar o chapéu da solenidade, endireitar as costas no espaldar da cadeira; há ninhos que adormecem nos olhos e vegetação que alimenta a alegria; sente-se o viver do corpo quando a dor amaina, ou, se bebe o inverno com frenesim; é aí que a saudade mora próximo, e baila com esta dor do tempo agudizado, lambendo o choro daquele algodão cinzento, metálico, que foge, – sótão enraizado e dúctil; na esfera do contrabando vive-se de empurrão, arrastam-se as mãos pelos caminhos nevoentos com a alegria das moscas voando em círculo, como se o prazer do eterno cuspisse nos dedos sedentos, e as vozes do silêncio andassem de costas voltadas para o crescimento das raízes, – subterrâneos da vontade aflita; a pele dos homens é um cemitério de desejos, aí morrem os lingotes de ouro que a terra oferece; tanta crueldade apontando aos infortúnios dos nossos haveres, deixa-nos sôfregos de amor com a língua rodeando os poros da errância; a casa veste-nos de um orgulho de mãe parida e doce canto, alardeando as suas migalhas; os intestinos, essa pele que tritura a fome como vício da natureza, absorvem o húmus da liberdade requerida, e troveja com relâmpagos do anonimato; e, os olhos! – uma nata devoradora de imagens decorando o coração, com janelas poéticas? – levantando o peso da eternidade, andamos nus com o saco do destino às costas, abeiramo-nos de nós como uma válvula de fuga sobre a intermitência do vazio, – irrisório trabalho da sobrevivência; e porque sobeja do segredo das vozes um medo do outro, - o silêncio é de ouro! o corpo move-se, e, sendo a pele elástica, talvez a dança convide à resistência;
– a grande tenda plantada sobre a calçada, impunha frente à água reluzente, o desafio ao abafado medo, como vertigo sonoro na parada militar; absorvia os ecos da solidão, pensei, quando estaquei junto ao palco e a força sonora vampirizava os tímpanos!
– O gingar delas era uma pulsão de beijos, naquela noite em que descendo, cheguei à doca; cuspi um certo veneno residual, pois a noite trazia-me no tempo longo, as suas reivindicações!
– sinto-me a abraçar as flores como um cão vadio!
– revoguei o que, a mim, outrora tinha dito, que – aquela dança era de macacos; fluindo da densa harmonia dos astros, das esferas desesperadas da sexualidade, na exuberância crispada do corpo, reneguei o peso daquela maldição exótica, esgueirando na memória uma surda melancolia, como se uma esponja empapada em mel lavasse um coração ferido; limpando os olhos bebi a saudade como hino vertiginoso da alegria olhando desmesuradamente os contornos daqueles abanões corporais; hino cravejado de balas;
– seria um absurdo dizer que fiquei, magoado! o olhar adentrou pelos intervalos dos corpos, e parei, … remoí no meu passado como se estivesse a descascar uma cebola!
– sincopadas vozes acudiam do ecrã de musselinas, dentro e fora, abeirando-se dum corpo lasso e desajeitado; não mais seria possível regressar aos - verdes anos – como se o tempo, evocando-o, tremesse de saudade, sendo contudo o carrasco que vai decepando os nossos dias; e entanto, uma beleza lúgubre, como bainha de espada brilhando, revolvia na pesada dose de ternura uma congestão muscular, quase um vómito de amargura crepuscular;
– neste cenário de cristal expande-se a vertigem!