sexta-feira, outubro 11, 2024

modelações XXX

 

A grande festa

 Desenho à pena (esferográfica)sobre papel de embrulho 

 24x20,5cm Anos 60

 

A memória é um hino onde as bandeiras dos actos passados continuam entoando, todos os cantos das nossas habitações acariciados, todas as rugas dos esconderijos vivendo ainda nos acordados dias; sem a memória, os sufragados dias entram na desordem; busco aí, todos as dividas para com os vivos e os mortos, os lívidos momentos de incertezas como um roçagar de plumas sobre o coração, ou, um deslizar de asa sobre a pele atormentada; há pedaços de memória em toda a casa que se habita, nesgas de sacrifícios ou rasgados sorrisos percorrendo os vãos, corredores e arrecadações nos devaneios labirínticos suportando as nossas vozes; será a memória uma casa? –, um vazio cheio dos nossos percursos; do corredor à cozinha, desta à sala, à varanda, ao banheiro, entrar e sair como no recuo da delgada infância retrocedendo e revisitada continuamente, apertando na distância o nó solene do tempo e seu esbulho, ancora digerindo o coração! o tempo e a memória são dois amigos dilacerados –, ó tempo volta para trás, dizia a canção, naquele lavar duma saudade amargurada, renovada busca pela chama que viveu e sobrevive; viverá também aí o futuro clamando como planta escondida na semente ou lugarejo em construção? A casa e o quintal, nós e todo o mundo acudindo em surdina ao brado desse esqueleto, retinindo como campainha pelos itinerários onde na casa a paz alguma vez reinou; daquilo que não me lembro, ainda sou eu? – do passado que mortificou o político na prisão, posso ser alguma coisa, guardar o seu rosto a meu lado como o espelho de mim? guardo eu a memória vivida dalguém  nas palavras em que o ouço? – o cantar do rouxinol permaneceu, pese o ribombar  dos disparos? esse troar dos canhões que sufoco me acolhe na sofrida rememoração do soldado? Creio na memória como uma palavra pesada e real, uma pedra saltando dum poema de Ramos Rosa, a minha marca de água, ou uma brisa de nevoeiro sufragando todo o corpo para o absurdo; – lembrando-me de ti sou um eco que me molda como pão amaçado, essa nudez reinante que me tolhe e mastiga, o passado formigando nas mãos!