Entrevista de Pedro Jubilot
Como é o quotidiano do teu poeta/ eu
poético / tu com a poesia da tua vida ? Da tua poesia? (isto é um pouco
confuso, abstracto…mas…
Se entendi a pergunta, reformulando-a: como convivo com a
minha poesia no meu quotidiano? Também poderá querer dizer: no meu viver
quotidiano, onde está o meu eu poético? Em qualquer dos casos, na intenção
subjacente à pergunta, julgo coexistirem três situações, a saber: 1 – o ideário
que subjaz nos afazeres rotineiros; 2 - o poeta ou “eu poético” que como “um
outro” acompanha o anterior; 3 – como surge o sentimento poético dessa convivialidade.
O viver quotidiano exige, sobre a rotina acinzentada dos
afazeres, alguns momentos, ainda que diminutos, da libertação dos sentidos para
fora ou para dentro, expandindo-nos emocionalmente. Eu diria que, quando isso
acontece, estamos a viver momentos de poesia. Contudo, ser poeta no sentido de
produzir algo ‒ a palavra poesia inicialmente significa produzir ‒ exige uma
outra dimensão mais: transmutar esses momentos em linguagem e escrevê-la. Sendo isto óbvio, não
deixa de ser pertinente; o fenómeno, está no segredo da linguagem. Quanto a
mim, esta exerce um poder activo sobre o humano: não é indiferente dizer «sai
daqui!...» ou «fica aqui…», mesmo para quem o diz. Visto assim, deste ângulo, a
poesia parece inscrever-se no sentido da libertação do sujeito, de resistência
ao sufoco. Todavia, se esta ideia nos leva ao pronunciamento da catarse como
fim, penso que a arte, a poesia, é mais do que isso.
Diz acerca de coisas dos teus dias em
que acontece poesia ou que a faças acontecer? O que há de/consideras poético em
certas horas dos teus dias
Atrás, falo da “libertação emocional”
como momento poético, quero dizer: limpar/distrair a mente dos fluxos de
preocupações que obstam a que fiquemos disponíveis mentalmente para pensar e sentir.
A poesia exige disponibilidade, embora estados de tensão ‒ não esquecer ‒ também levem à produção. Mas liberdade
e tensão emocional não são contraditórios, digamos mesmo que, juntas, formam um
quadro propício à produção. Costumamos designar esses momentos por inspiração.
No meu caso, a tensão é um dado resultante do pensamento, pensar o concreto, os
problemas que o ser enfrenta, sejam eles sociais, filosóficos ou procura do
sentido, indagação subjectiva, a nossa relação com ou a presença da Natureza e
do outro em nós. Não me vejo à margem do homem político e por isso da política;
não sou “ higienista espiritual”, sempre assumi o meu lado partidário e tento
não tratar o outro como imbecil, canalha ou irrisório. Não procuro o belo pelo
belo, seja na natureza, nos sentimentos piedosos ou amorosos. É a procura de
desvelar alguma realidade que me emociona, não é viver o mundo pelo lado do
esteticismo. Este é o panorama de fundo onde a poesia me acontece e está
presente desde que acordo até ao deitar. Tudo o que existe, e o que existe é
tudo, é passível de meditação, de sentimento, e essa é a grande mensagem.
O
meu primeiro livro, Página Móvel com
Texto Fixo, foi produzido, em grande parte, durante a noite, já deitado;
sobre a mesa-de-cabeceira estava sempre o caderno, e aí ia escrevendo os textos
que me iam surgindo. O segundo, Ouro e
Vinho, escrevi-o à mesa, enquanto comia, e o terceiro, Mostruário de Títulos para Poemas, cresceu frente ao computador. As
mesas dos cafés também dão azo a momentos de produção, quando debruçado sobre a
leitura. Houve, até, um poema que fiz quando estava a cozinhar e outro quando
passava a roupa a ferro; as situações divergem, mas o que é comum nelas é o
pensar sobre… observar a realidade ou o que julgamos que seja, e confrontá-lo
com os nossos pressentimentos. O que digo atrás, contudo, é mais sobre uma
parte do processo, as circunstâncias do momento, do que sobre o poema ou o
acto, acção poética; para isso temos que entrar na obscura claridade da linguagem.
Para mim, as palavras são uma espécie de cascabulho que a imagética tem que
trabalhar em contexto emocional, criando entidades semânticas renovadas; isto é
o acto poético, cuja materialidade imaterial fornece prazer, enquanto,
culturalmente, produz sentido ao ser humano. A poesia pode ser material, como a
fome, por isso se diz que nem só de pão vive o homem!
Já ninguém usa caneta e papel, quanto
mais máquina de escrever, que material usas para escrever, como é o processo
material da tua escrita?
( é isto importante)
E o imaterial ?
Sou alguém que cresceu mais ligado às artes plásticas do que à escrita. Talvez por essa ligação, sempre gostei de usar canetas. Sou
do tempo do aparo, da caneta de tinta permanente, gosto de riscar, dou por mim,
distraído, a desocultar o papel branco com traços informais; reflexos inorgânicos,
ou orgânicos, duma energia desregulada e por isso formalmente abstracta.
Espelho da nossa existência? Muitas vezes, acontece começar com
uma forma de letra e acabar noutra; outras vezes, misturo inadvertidamente
vários tipos de letra na mesma palavra. É uma confusão que me chega a irritar;
dificilmente mantenho o mesmo tipo de letra no percurso da escrita, mas às
vezes acontece, raramente. Sofro duma certa disgrafia e não só, troco a posição
de algumas letras na palavra. Também tem a ver com a dicção; nasci e vivi no campo,
onde as corruptelas da dicção são frequentes. Quando apareceu o computador,
tive que me adaptar. A princípio, estranhei, mas rapidamente detectei certas
vantagens, por exemplo, alterações e fixação do texto, releitura facilitada,
pois a escrita, à mão, acaba por ser quase estenográfica. Actualmente escrevo
com os objectos que tenho ao meu dispor no momento: esferográfica, teclado,
grafite, caneta de tinta, aparo, se for caso disso; tenho uma colecção de
aparos de escrita comercial que se utilizava nos livros do Deve-e-Haver. Se
isto é importante? – não é e é; não é, porque a linguagem pouco ou nada tem a
ver com este processo, e é, porque o prazer de escrever passa também pelo
aspecto formal com que se age, neste caso, se escreve. Escrever no teclado do computador
é como escrever sobre o algodão; escrever sobre o papel é como riscar na nossa pele
‒ é, mais ou menos, isto.
Estes aspectos matéricos da escrita são interessantes de algum modo, mas os ditos
imateriais são de outra ordem. Aqui levantam-se questões – quase esotéricas,
diria eu com alguma ironia. Já a palavra, imaterial, contém um poço de
sugestões e suspeições! Quando penso ou sinto, não há materialidade nenhuma
nessa actividade mental e, acrescento, corporal? Sabe-se hoje que certas áreas
do cérebro são activadas, conforme se reage aos estímulos externos ou internos,
e que isso passa pelo percurso de substâncias químicas e energéticas através
dos neurónios; criam mapas, segundo nos elucida o António Damásio, mapas que se
repercutem pelo corpo todo, só assim se explica que o amor resida no coração!
Para mim, a linguagem é um sexto sentido que a natureza ou a acção do ser
humano foi capaz de desenvolver ao longo de milénios, senão ao longo de milhões
de anos. O tão falado sexto sentido, que algumas vezes alguns referem a mulher
possuir, não passa da linguagem, mas isso também acontece ao homem, só que o
homem anda mais distraído com outros afazeres, anda duma maneira geral mais
voltado para a acção exterior; quando se está voltado para a acção interior
onde a linguagem se exerce, actua, passa a dizer-se que é um poeta, um artista!
Neste sentido, a mulher será, por hipótese, sempre poeta, e o homem é-o às
vezes! Assim como o ver se exerce através da luz, o tacto pelo apalpar, o
cheiro pela activação do sistema olfactivo, a linguagem é activada pela
sonoridade das palavras ou pelas imagens, elementos que constituem o
significante da fala interior. Uma vez memorizadas as
palavras e as imagens, estes entes podem ser activados pelas emoções, esta
articulação cria o pano de fundo da linguagem que, procurando dar sentido às
emoções, no caso da poesia, produzem por isso um outro tecido, dito imaterial. Sempre
tive a ideia de que a linguagem é, do ponto de vista da sua percepção, digamos
“imaterial”, mas acresce à natureza humana substrato material; a pouco e pouco,
ela vai criando em nós uma segunda natureza, ou ampliando a natureza inicial. A
poesia, a arte em geral, mais do que qualquer outra actividade humana, nesta
hipótese, será um trajecto criador de sentido e, por isso, do humano.
Quando ( dia, hora, estação do ano)
escreves ?
Vícios, manias e segredos contáveis
relacionados com a tua escrita …
Não vejo um artista a produzir como se fosse um
empregado de escritório, com horas ou outra marca temporal a regular o seu
trabalho, mas tem que haver uma certa disciplina e continuidade; assim sendo,
procuro todos os dias produzir alguma coisa, o que pode acontecer enquanto
leio, pequenos apontamentos que surgem, ou à noite, depois do dia arrumado. A
“mania” que sempre tive e tenho é a de ir ler para o café, no meio de um certo
burburinho de fundo e que não seja estridente aos ouvidos. Na minha biografia,
há a história dos cafés: Astória, Sul América, Atlântico, Calcinha, Carripana,
e tantos outros mais dos quais não sei o nome.
Consegues escolher o livro (e poema?)
de tua autoria preferido/s ? Os mais relevantes?
Livro relevante da minha autoria
destacava o Mostruário de Títulos para Poemas.
Já em relação aos poemas, tenho muita dificuldade em salientar um; certamente
há os que me parecem mais conseguidos, mas teria que reler tudo novamente. Essa
apreciação depende também muito da perspectiva em que nos colocamos.
Autores que gostas ou que possas
dizer te inspiram a escrever?
Desde que fui para Lisboa aos doze anos
que leio os consagrados da literatura, portugueses e estrangeiros, desde Zola a
Steinbeck, Ferreira de Castro a Júlio Dinis passando pelo Aquilino Ribeiro… A
poesia foi um pouco mais tarde, com Cesário Verde, Fernando Pessoa, etc. Todos
esses escritores me influenciaram de alguma maneira, uns por um motivo, outros por outro; lembro-me do Germinal do Zola, Anna
Karenina do Tolstói, assim como d’O Bairro da Lata ou A um Deus Desconhecido,
do Steinbeck, ou ainda do Elogio da Loucura, do Erasmo. Das leituras mais
recentes, há dois livros que me disseram muito: Em Busca do Tempo Perdido, do
Proust, e o Ulisses do Joyce; há nestes livros muito de inovação na linguagem
escrita, já não digo tanto do Kafka ou do Musil, o que não quer dizer que não
sejam de igual modo grandes escritores. Percebo hoje que os aspectos da
expressão formal da escrita sempre me prenderam; lembro-me de ter ficado
entusiasmado com uma publicação pela embaixada brasileira, nos anos sessenta,
do caderno Poesia Concreta, que ainda
guardo.
Que livro de poesia estás a ler,
leste recentemente?
Há três áreas de escrita que estou
sempre a ler: poesia, ensaio e narrativa, umas vezes mais concentrado numa área,
outras noutra; só leio em português, não domino mais língua nenhuma, e mesmo o
português penso que teria muito a aprender; nunca fui capaz de dominar a
gramática nos seus aspectos técnicos; a lisura que eventualmente possa ter na
minha escrita é mais resultado da leitura do que do saber. Estou a ler um livro
de crítica literária do David Mourão-Ferreira, Vinte Poetas Portugueses, de 1980,
O livro da Consciência, do António Damásio, e estou a acabar de ler O Livro do
Desassossego, compilação da Teresa Rita Lopes. Já tinha lido o Bernardo Soares,
mas estou a relê-lo, mais os outros dois semi-heterónimos, como o FP dizia.
Como encaras mais um livro de poesia,
e este em relação aos anteriores?
Este meu último livro, Púrpura Voz, foi um pouco surpresa,
porque não o tinha em mente publicar, sobretudo depois do Mostruário. Formalmente, está na sequência do Ouro e Vinho, quase nada tem a ver com os outros dois, mas é mais
depurado do que aquele. Ao rever os poemas,
eliminei tudo o que me pareceu estar a mais, ao
ponto de alguém me dizer: «são tão pequenos os poemas…, mas já não há palavras?»
O Púrpura Voz está arrumado em quatro
contextos temáticos e abarca um tempo de produção à volta de vinte anos, entre
o mais antigo e o mais recente dos poemas. Claro que, quando escrevi o poema de
há vinte anos, foi como um complemento a um trabalho de artes plásticas e não
era um texto autónomo, como aparece no livro. Os últimos, que também são os que
estão no fim do livro, constituem uma experiência: há um verso e a seguir, em
itálico, uma espécie de eco, como se fosse o coro das tragédias clássicas do
teatro grego.
Completa as frases:
Os artistas continuam a morrer…. se forem felizes.
O Algarve é um bom lugar para…. despir a pele, deixar queimar o coração
O projecto Gorjões Arte é …. total arte.
A António Arroio para mim foi….uma nuvem de desassossego.
Ainda há uma esperança para o mundo
enquanto…se disser que há.