segunda-feira, março 01, 2021

os Corredores habitados

com o Pedro Morais  - e, outros
 
 
Exposição colectiva de "Arte Moderna" 
na Aliança Francesa em Faro
no ano de 1964

Nome e esenho de Pedro Morais no postal

À noite, depois do jantar, a campainha retinia, e o amigo lá estava à porta da entrada enfeitado pelos nossos encontros, pela aura noctívaga da solicitude; caminhávamos par a par numa vibração sem atritos sonoros pisando a calçada miúda à portuguesa, em direcção à Avenida da Igreja; através dos amplos vidros e a farta iluminação de néons fosforescendo de branco leitoso, do lado duma escuridão frouxa para o espaço contíguo do café Astória, via-mos as mesas repletas de clientes, aqueles do depois do jantar...

 na rua transversal, num minúsculo café que se  escondia entre lojas de artigos domésticos, construíamos a nossa noite;

colocados os livros e as revistas que nos acompanhavam sobre o tampo da mesa ao fundo, debaixo da televisão embicada no alto como foguetório de aleluias, o estribilho da conversa circula em torno da arte, dos artistas e da pintura, – doída festa de encontros; consultavam-se os livros onde as rosas expectantes abriam pétalas de desejos...

líamos nos desenhos de Matisse os pequenos encantos dos objectos caseiros enroscados ao quotidiano dos lazeres, da ternura do espaço que os envolve na voz lírica dos poemas visuais; sobre o papel lustroso do pequeno e soberbo leque de folhas, passavam as nossas mãos burilando os sentidos nervosos do ver e sentir; o Brueghel com o seu povo curvado carregando as infinitas histórias em cenas apocalípticas, merecia uma atenção meticulosa, uma leitura judiciosa das figuras e dos seus actos mirabolantes; um carnaval de paixão amedrontada sai daqueles rostos...

 escondidos debaixo do televisor devolvia-se à noite os seus odores e fogos do dia com a passagem das horas suspensas na injunção dos sentimentos, – esboços das águas flutuantes;


 

quinta-feira, fevereiro 04, 2021

A eternidade é um instante

 


Paisagem - foto digital Adão 2021

Ver chover - 2

Ver chover! – escrever na transmutação da arrebol; o céu está cinzento e nas vidraças escorrem os áureos torvelinhos de água, escamosas e escorreitas deslizam as lágrimas invernosas dando voz ao espaço, saudação melancólica de bravura aos risonhos verdes das plantas – palacetes da natureza plasmados nos horizontes; é aí que florescem as sonolências do coração, as vibrações do entendimento e do orgulho distraído das emoções; agora, a luz clareia os níveis da constatação e as flores das amendoeiras soltam-se sacudindo o horizonte perdido num frenesim de brancura, os esconsos das alfarrobeiras escondem os espaços amargurados; a natureza titubeia na invernia dolorosa do prazer e da beleza prosaica; um cariz acidulado de bruma veste todo o campo, os montes, os vales abnegados da ambição, as tortuosas raízes dos descampados; amortece o esplendor dos sorrisos numa cave de silêncio liquefeito, sobraçando a fluidez das poças de água, reflectida atmosfera libertária.

Mais um minuto e a desenvoltura da sedução, cai!

 

terça-feira, janeiro 26, 2021

Anos 20

 
Paisagem - Pintura a óleo sobre tela III
 40x50 -  2020

Ver chover! - abraço a chuva como suspirando por um amor, um canto telúrico ou a embriagues do sol; ela cai rumorosamente ou sem rumor na vidraça aveludada em frente, é um cristal aéreo subejando da nuvem  pagã e altaneira na verdade dos astros lá no alto;  precipita-se obliquamente sobre líquenes ou a terra que a aspira gulosamente; ansiosa ela sufocativamente grita em turbulência de vapores exalados; cheira a húmus, a fertilizante dos beijos e dos caules das plantas; das línguas rizomáticas soltam-se os sabores acetinados dos vinhos e dos elixires em esdrúxulas conversas de amotinações dos vendavais; as chuvas deixam nos vidros os riscos da inquietação generosa das lembranças, amortizam a queda das palavras opacas e pesadas sobre o estendal da saudade; a paisagem é a varanda sobre um lençol bordado a lágrimas.        

sábado, janeiro 09, 2021

Anos 20

Paisagem I 
 Pintura a óleo sobre tela - 18x14
2020
 
 
Paisagem II
 Pintura a óleo sobre tela - 14x18
2020
 
 
abre o chão com os olhos
brada ao coração temerário
 
só a canção do desvario
adensa o infortúnio
 
a ligeira doença que nos acode
é um monstro de ilusão
 
o murmúrio da voz não se cansa
- vidro solar ilustrado
precário, feroz
sem morte anunciada
veste o chão que nos acolhe
 
 

sexta-feira, dezembro 11, 2020

A eternidade é um instante

 

 

Foto de Campião - anos 50

 

Aos colegas da Escola António Arroio

Subindo a escadaria de pedra alcançado o pátio ligeiramente superior, à direita, fica a sala de pintura, – alçada ternura de encontros; a pequena sala desdobrava-se em ondas com os afazeres nas horas dedicadas ao riscar no papel cavalinho e cartolinas ou retirando os pigmentos dos boiões de tinta depositando-os nas paletas, – pétalas da jardinagem solene; sentia-se a vibração escancarada nos olhos ao tocar a ponta do pincel nas superfícies ainda brancas dos suportes; no espaço interior do cubículo fervilham adornos ávidos de sensações coloridas com os dolorosos artificies das artes alinhavando amostras de pequenas composições, emblemáticas formas naturais ou inventadas, – embelezados festins de tintas;

entre os alunos reinava um desafio sincero pendurado numa alegria festiva; estava-se num palco representando cada um o seu calor afectivo tão comovente como a audácia dos primeiros passos, – éramos meninos jardinando pétalas;

se o professor reinava era como um ouvinte quase piedoso e amigo acompanhando as esperanças ruidosas dos futuros artistas, que inquietos, se agitavam como borboletas ziguezagueando em busca do pólen, da emancipação dos olhos e das mãos.